quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Precisamos urgentemente de uma educação subversiva.

Quando queremos ver mais longe, temos de subir a um ponto alto de onde nos seja possível olhar o horizonte. Com as ideias passa-se o mesmo, quando queremos compreender o porquê das coisas, aquilo que nos escapa na interpretação de uma realidade quase sempre complicada, temos de acompanhar quem está habituado a subir às montanhas e chegados a um ponto alto ouvir a sua explicação, "porque as coisas deram no que deram".

Hoje, estamos com Alberto Melo num texto que me acompanha à mais de 20 anos, modelador na forma como vejo o mundo.

ALBERTO MELO

"Vivemos de novo uma época de pensamento único, com lógicas culturais hegemónicas e tendências societais massificadoras, globalizantes, totalitárias.

O que outrora se tentara em nome de um grande chefe, de um povo dominante, de um deus específico, isto é, o domínio do mundo, das vidas e das mentes, está agora em curso sob a bandeira de uma nova religião - a chamada Economia, e de um ídolo entretanto promovido a divindade - o Dinheiro. O fim do séc. XX assiste à instalação crescente e aprofundada do totalitarismo economicista. Aliás, para sermos rigorosos, a Finança já se sobrepõe à Economia, pois é o capital financeiro que dita as regras a nível mundial, dominando o capital produtivo, numa lógica crescente de dinheiro a gerar dinheiro, em roda livre, o que já produziu uma massa monetária mais de 50 vezes superior ao valor da economia real mundial.

Assim, tanto o poder político como a organização social, como naturalmente o funcionamento da economia, estão rapidamente a abandonar o papel de instrumentos de civilização, inventa­dos e aperfeiçoados pela Humanidade para melhor satisfazerem as suas necessidades, para se transformarem em simples engrenagens - reduzidas e redutoras - de crescimento de indi­cadores estatísticos, de multiplicação e acumulação de lucros. Isto, num processo que cada vez torna mais ricos e poderosos os já ricos e poderosos e cada vez mais carentes e impo­tentes os demais habitantes do Planeta. Em nome do crescimento - que beneficia de maneira crescente um número cada vez mais reduzido de pessoas - sacrificam-se valores e direitos, agrava-se o desemprego e a exclusão social, saqueiam-se recursos limitados e destrói-se a qualidade de vida e o ambiente. É um facto que as 100 pessoas mais ricas do mundo usufruem de rendimentos equivalentes aos dos bilião e quinhentos milhões mais pobres...

Todo este processo é conduzido de forma aparentemente natural, baseado em acepções da natureza humana que a definem como sendo imanentemente egoísta, gananciosa, competitiva, agressiva.

E é verdade que o ser humano é isso tudo, como o comprova todo o comportamento destrutivo, acumulador e egocêntrico de que é capaz.

Mas é também o oposto - altruísta, desinteressado, cooperativo, pacífico, e é ainda todos os graus intermédios entre estes extremos. A especificidade da natureza humana e a sua riqueza única reside precisamente nesta diversidade e variedade de atitudes e de consequentes comportamentos. E, como bem demonstra a Antropologia, não há um regime social, uma econo­mia e uma política, que possam erigir-se como únicos naturais para a espécie humana.

Se o modelo que se pretende hoje dominante nas nossas sociedades - o materialismo produtivista - corresponde a certas facetas da nossa natureza, outros já se impuseram e outros se imporão, que corresponderam e irão corresponder a outras tantas dimensões da dita natureza humana. Apesar da ideologia anti-histórica de defensores do modelo actual, que pretendem que após dois séculos apenas de evolução do actual sistema económico se chegou ao fim da História, será absurdo considerar que todo o futuro se desenrolará como simples reprodução circular das formas hoje encontradas. Seria a negação total das capacidades criativas e ino­vadoras dos seres humanos, a negação da própria humanidade das pessoas. O que é aliás coerente com o sistema ideológico que pretende hoje em dia dominar-nos, cujo anti-humanis­mo é visível e profundo. Perante um processo de crescimento que torna cada vez mais evi­dentes e gravosos os seus custos - especialmente em termos pessoais, sociais e ambientais ­negam-se as alternativas, as opções, as decisões e apresentam-se tendências e factos, por mais revoltantes e absurdos, como inelutáveis consequências da aplicação de regras de uma Ciência Económica, tornadas tão exactas quanto a Lei da Gravidade... Negar-se à Economia a sua qualidade de Ciência Humana e transformá-la em processo informatizado de cálculos simplesmente quantitativos é um dos aspectos hoje mais generalizados da desumanização em curso.

Teorias como práticas hoje correntes, que procuram assim condicionar as mentes e os com­portamentos humanos à aceitação do pensamento e do regime único, reforçam em per­manência aquelas características e capacidades humanas que são causa e consequência do materialismo produtivista/consumista actual.

Dentro de um contexto global e globalizante que premeia e reforça as características humanas de que depende a sobrevivência e o desenvolvimento do modelo económico-político domi­nante, é natural que se demonstre facilmente que esse modelo se encontra em sintonia com a natureza humana...

No entanto, não terá sido assim tão fácil.

Como explicar então os milhões investidos no matraquear constante da publicidade a apregoar que consumir é bom, no consumo é que está a felicidade (e a identidade). Aliás, no seu papel de educação funcional, os meios de comunicação social cumprem, para além de um papel de apóstolos do consumo e reveladores da ganância como componente da natureza humana (publicidade, concursos,...), a função primordial de anestesiadores do horror, do absurdo e da revolta. Tal é a principal função das más notícias, que lidas e reveladas constantemente, quo­tidianamente, oriundas de todas as latitudes e longitudes, mostram como a natureza humana é assim, e portanto incapaz de conceber e de concretizar um mundo melhor, e acabam ainda por banalizar de tal forma o horrível e o insuportável, que os tornam aceitável companhia nas salas de estar e na mesa de jantar.

Perante a multiplicação e a acumulação de negatividades produzidas pelo regime reinante, e perante a constatação de que será de todo inviável generalizar as taxas de consumo, de desperdício e de poluição do bilião de privilegiados de hoje aos 6 ou 7 biliões da primeira metade do séc. XXI, torna-se indispensável e urgente alterar o rumo das nossas sociedades.

É necessário, mas será possível?

É que se for necessário e possível, então será inevitável.

Para que entre nos horizontes do possível, nas mentes e nas vontades dos cidadãos de hoje, a visão de uma sociedade melhor e o processo viável de nos aproximarmos dela, será indis­pensável um forte choque cultural, que entre definitivamente em ruptura com as crenças, ide­ologias, catecismos, preconceitos e frases-feitas que fazem as vezes de discurso oficial, incon­testado, nos palcos do poder como nas cátedras da academia.

Paralelamente à educação funcional, que ajusta a mão-de-obra ao mercado de trabalho, que reforça a competitividade das empresas, que irá contribuir para o crescimento do PIB... Pre­cisamos urgentemente de uma educação subversiva, porque - e é mais um sinal dos tempos ­o humanismo crítico está condenado nos nossos dias a uma função essencialmente subver­siva das teorias e práticas desumanizantes que dominam a sociedade moderna."

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